Política monetária: ceticismo e persistência -Valor 5 de julho de 2019

Por André Senna Duarte

Em novembro de 2010, o banco central americano (Federal Reserve) iniciou um segundo programa de compra de ativos quando a inflação dava sinais de enfraquecimento. Naquele momento, diferentemente do primeiro, a economia encontrava-se longe de uma nova recessão e não havia mais riscos evidentes ao sistema financeiro. Inúmeras críticas foram tecidas ao Fed, com destaque para a possibilidade de um surto inflacionário.

Nove anos após, apesar da forte queda da taxa de desemprego e duas rodadas adicionais de estímulo seguido de um ciclo de aperto monetário historicamente modesto, em nenhum momento neste período foi possível inferir que a meta de inflação havia sido atingida de forma sustentável.

Em agosto de 2014, o presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, discursou, em Jackson Hole, indicando pela primeira vez a sua preocupação com a desancorarem para baixo das expectativas de inflação de mercado e prontificando-se a utilizar todos os instrumentos disponíveis para garantir a estabilidade de preços. Adotava-se a seguir um relevante programa de compra de ativos.

Desde então, mesmo com a queda substancial da taxa de desemprego, a inflação permaneceu praticamente inalterada, o BCE revisou para baixo a projeção de inflação em 16 dos 18 trimestres e as projeções de mercado encontram-se ainda mais baixas em comparação com o momento do discurso.

Em regra, a narrativa se repete em outros países em que o sistema de metas de inflação encontra-se consolidado. Apesar da adoção de uma política monetária inicialmente vista como agressiva, a atividade reage de forma relativamente modesta e mesmo com forte redução da ociosidade na economia ao longo do tempo, a trajetória da inflação é sistematicamente inferior ao projetado pelo banco central, sem haver convergência sustentável à meta. Além da queda da taxa de crescimento potencial da economia, o primeiro fenômeno decorre da contínua queda da taxa de juros neutra (juros compatíveis com a inflação na meta no médio prazo), das incertezas na sua estimação e as dificuldades instrumentais de adição de estímulo quando no limite inferior da taxa de juros básica.

Por sua vez, o segundo fenômeno é conhecido como “achatamento da curva de Phillips”. A curva de Phillips representa uma relação de troca entre inflação e taxa de desemprego. A teoria diz que quanto menor a taxa de desemprego, maior a inflação. Porém, desde a crise financeira, esta relação tem sido tênue ao redor do mundo. Diante desse quadro, os bancos centrais estão mais céticos com relação à capacidade de estimar variáveis não observáveis como os juros neutros e a taxa de desemprego compatível com a estabilidade da inflação (Nairu), bem c omo de projetar a convergência da inflação à meta. Isto não significa que não haja mais utilidade nas projeções. Apenas maior incerteza.

Nos últimos meses, as autoridades monetárias vêm apontando a necessidade de a inflação flutuar simetricamente ao redor da meta durante o ciclo econômico. Trata-se de estratégia para recuperação da credibilidade dos bancos centrais decorrente do longo período de inflação baixa.

A implicação prática é uma certa mudança na função de reação dos bancos centrais que passa a incorporar na determinação da política monetária o comportamento passado da inflação. É neste sentido que aponta a revisão em curso da estratégia de política monetária do Fed.

O ceticismo nas projeções e a inflação aquém do desejado também implicam na necessidade da persistência do estímulo. Para uma série de economias, a persistência também se justifica pelas preocupações quanto à inflação baixa em uma eventual virada de ciclo econômico e as dificuldades inerentes à introdução de estímulo nesse contexto. Quais lições internacionais podem ser aplicadas ao quadro doméstico de política monetária?

Primeiramente, uma postura mais cética em relação às medições de variáveis não observáveis parece ser adequada. Com uma economia estagnada, um impulso fiscal e parafiscal substancialmente negativo e poucos indícios de convergência dos núcleos de inflação para a meta, deve-se ter certa cautela quanto à avaliação de que a taxa básica de juros se encontra abaixo da neutra.

Cautela também é necessária quanto ao suposto efeito expansionista da reforma da Previdência. Apesar da literatura apontar que ajustes fiscais com base em cortes de gastos têm efeito limitado sobre a atividade, não é claro o sinal do efeito. Além disso, a própria variância nas estimativas é elevada. É bem possível que no caso brasileiro seja expansionista em decorrência da recuperação da credibilidade fiscal. Porém, após longo período de performance da economia aquém do esperado, algum ceticismo é razoável.

Por fim, neste momento, as incertezas que permeiam as estimativas de convergência da inflação para a meta são elevadas. O ano de 2019 será o terceiro seguido de inflação abaixo da meta. A experiência internacional sugere que é importante a persistência de elevado, e em muitos casos crescente, estímulo monetário para assegurar o objetivo de estabilidade de preços.

Não há tempo a perder.

André Senna Duarte é economista da Truxt Investimentos, mestre em economia pela PUC-Rio e advogado 

E-mail: andre.duarte@35.168.31.46 

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